quinta-feira, 2 de julho de 2009

História iroquesa (Campbell)

"Existe uma história iroquesa que ilustra o motivo da rejeição de pretendentes. Uma garota
vivia com a mãe numa barraca, no limite da aldeia. Era uma garota muito bonita, mas
extremamente orgulhosa, e não aceitaria nenhum dos rapazes. A mãe vivia terrivelmente
aborrecida com ela.


Certo dia, elas estavam colhendo madeira bem longe da aldeia, quando uma escuridão
ameaçadora se abateu sobre elas. Pois bem, não era o escuro da noite. Quando uma
escuridão daquelas ocorre, há sempre a artimanha de um mágico por detrás. Então, diz a
mãe: “Vamos juntar alguns gravetos e fazer uma pequena barraca para nós; vamos colher
madeira e passar a noite aqui,”.

E exatamente o que fazem; preparam uma pequena ceia e a mãe adormece. De repente, a
garota abre os olhos e vê um belo jovem diante dela, com um cinto de contas de conchas,
esplêndidas plumas negras... um tipo muito atraente. Ele diz: “Vim para me casar com você
e aguardarei sua resposta”.



E ela diz: “Preciso consultar minha mãe”.
Ela faz a consulta, a mãe aceita o jovem como genro e este dá ã mãe o cinto de conchas,
como prova da seriedade de sua proposta.

Então ele diz à garota: “Esta noite gostaria que
você viesse ao meu acampamento”. E então ela parte com ele. Meros seres humanos não
eram suficientemente bons para essa garota; por isso ela agora tem algo muito especial.

(...)

Ora, a aventura é estranha e maravilhosa. Ela acompanha o homem à aldeia dele, e eles entram na cabana. Passam juntos dois dias e duas noites e, no terceiro dia, ele diz a ela: “Hoje vou sair para caçar”. E parte. Mas assim que ele fecha a trave da entrada, ela ouve um estranho barulho lá fora. Ela passa o dia inteiro sozinha, na choupana, e, quando a noite chega, ouve outra vez o mesmo
barulho estranho. A trave se abre, abruptamente, e uma prodigiosa serpente desliza para
dentro, com a língua dardejando. Pousa a cabeça no colo da moça e diz: “Agora cate os
piolhos da minha cabeça”. A garota encontra ali toda espécie de coisas horríveis e mata-as
todas; em seguida, a serpente ergue a cabeça e desliza para fora, e, num átimo, logo depois
de se fechar, a trave da entrada se abre e ali está, outra vez, o belo jovem, seu noivo. “Você
teve medo de mim quando eu entrei aqui, daquele jeito?”, ele pergunta. “Não”, responde
ela, “não tive medo algum.”



No dia seguinte, ele sai para caçar outra vez, e ela também sai, à procura de lenha para a
fogueira. A primeira coisa que ela vê é uma enorme serpente, se aquecendo nas pedras – e
outra e mais outra. Ela começa a se sentir muito estranha, saudosa e desanimada, e retorna à
cabana.

Nessa noite, a serpente reaparece, deslizando, volta a partir e retorna na forma de homem.
No terceiro dia em que ele se vai logo cedo, a jovem decide abandonar esse lugar. Ela deixa
a cabana. Quando está na floresta, sozinha, parada, pensando, ouve uma voz. Ela se volta e
ali está um velhinho, que diz: “Meu bem, você está em dificuldade. O homem com quem
você se casou é um de sete irmãos. Todos eles são mágicos consumados e, como muitos
dessa espécie, seus corações não estão nos seus corpos. Volte à cabana e, na sacola
escondida debaixo da cama daquele com quem você se casou, você encontrará uma coleção
de sete corações”.



Este é um motivo xamânico, padrão, em todo o mundo. O coração não
está no corpo, por isso o mágico não pode ser morto. Você precisa encontrar e destruir o
coração.

Ela retorna à cabana, encontra a sacola cheia de corações e começa a correr para longe,
quando uma voz a chama: “Pare, pare”. Obviamente, é a voz do mágico. Mas ela continua a
correr. E a voz exclama: “Você pensa que pode fugir de mim, mas não conseguirá”.
Exatamente nesse ponto, ela está começando a desmaiar, quando ouve outra vez a voz do
velhinho. “Vou ajudá-la”, ele diz. Para surpresa dela, ele a está puxando para fora da água.
Ela não sabia que estava dentro da água; quer dizer, com seu casamento, ela tinha se
movido para longe da esfera racional, consciente, direto para a área de impulsos do
inconsciente.


É sempre esse o significado dessas aventuras subaquáticas. O caráter resvala
para fora do âmbito da ação controlada, na direção dos impulsos e eventos transpessoais,
que talvez possam ser contidos, talvez não.
O que acontece em seguida, nessa história, é que, quando o velho a retira da água, ela se vê
cercada por um grupo de velhos parados ao longo da margem, todos iguais ao seu salvador.
São os trovões, os poderes do ar superior. Isto é, ela ainda se encontra no plano
transcendente a que foi levada por recusar os pretendentes; somente agora, tendo se
separado do aspecto negativo dos poderes, ela entra na posse do aspecto positivo.


(Campbell, em O Poder do Mito)