quarta-feira, 24 de março de 2010

Bachelard

"Galgando a árvore com o fim de pendurar
Essa coroa vegetal nos ramos pensos,
Maldoso um galho se partiu, e ela tombou
Com seus troféus herbóreos no plangente arroio.
Abriram-se-lhe em torno as vestes, amplamente,
Mantendo-a à tona qual sereia, por instantes:
E ela cantava trechos de canções antigas,
Como que sem noção do transe em que se achava,
Ou como criatura que, nascida na água,
A esse elemento fosse afeita. Mas, em breve,
As suas vestes, já embebidas e pesadas,
Levaram a infeliz, do canto melodioso
Para lodosa morte.
(...)
Se o leitor, que talvez nunca viu semelhante espetáculo, o reconhece ainda assim e com ele se comove, é porque esse espetáculo pertence à natureza imaginária primitiva. É a água sonhada em sua vida habitual, é a água do lago que por si mesma "se ofeliza", se cobre naturalmente de seres dormentes, de seres que se abandonam e flutuam, de seres que morrem docemente.
Então, na morte, parece que os afogados, flutuando, continuam a sonhar...Em Délire II, Rimbaud reencontrou essa imagem:

flutuação pálida
E encantada, um afogado pensativo, às vezes desce...

Debalde se trarão para a terra os restos de Ofélia. Ela é verdadeiramente, como diz Mallarmé, "uma Ofélia jamais afogada...jóia intacta sob o desastre". Durante séculos ela aparecerá aos sonhadores e aos poetas, flutuando em seu riacho, com suas flores e sua cabeleira desatada pelas ondas.
(...)
Como sempre acontece no reino da imaginação, a inversão da imagem prova a importância da imagem; prova seu caráter completo e natural. Ora, basta que uma cabeleira desatada caia - escorra- sobre os ombros nus para que se reanime todo o símbolo das águas. No admirável poema dedicado a Annie [de Poe], tão lento, tão simples, lê-se esta estrofe:

And so it lies happily
Bathing in many
A dream of the truth
And the beauty of Annie
Drowned in a bath
Of the tresses of Annie"
(...)
A mesma inversão de um complexo de Ofélia é sensível no romance de Gabriel d'Annunzio (...): "Seus cabelos escorriam, escorriam como água lenta, e com eles mil coisas de sua vida, informes, obscuras, lábeis, entre o olvido e a lembrança. Senão quando, acima desse fluxo..."
(Bachelard- A água e os sonhos.)

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