"Nos momentos pânicos do Brasil, corro aos grã-finos. Bem os conheço.
Têm uma fina sensibilidade histórica e, direi mesmo, um agudo faro
profético. E, no último sábado, lá fui eu para um palácio no Alto da Boa Vista (o banheiro da dona da casa, todo em mármore e com bicas de ouro, é desses que exigem uma Paulina Bonaparte). Chego e caio nos braços do anfitrião. Qual um Bórgia obeso, ele me arrasta de convidado em convidado, fazendo as apresentações. Bem. já apertei todas as mãos presentes. E, então, ele me pergunta: — “Você não é marxista?”.
Alcei a fronte: — “Não sou marxista”. O Bórgia recua dois passos e avança outros dois, num desolado escândalo: — “Como pode? Como pode?”. E, de fato, em certas recepções, o não-marxista é olhado como se fosse uma girafa. O dono da casa atraca-se a mim, patético: — “Você tem de ser marxista!”. E, de olho rútilo e lábio trêmulo, repete o apelo: — “Seja marxista!”.
Aquela reunião tinha belas senhoras por toda parte. Eu próprio estou cercado de decotes. E, então, para me justificar e me absolver, falo de uma velha entrevista que fiz com o Otto Lara Resende, a quatro mãos. Lá está dito o óbvio, isto é, que falta a Marx a dimensão da morte. Em nenhum escrito marxista há uma linha, uma escassa linha sobre o nosso destino eterno. E, como Marx nos tirara a alma imortal, queríamos que ele a devolvesse.
Um dos decotes presentes tomou a palavra. Afirmou que, não sendo eu marxista, o meu teatro estaria mais obsoleto do que a primeira audição do “Danúbio azul”. O anfitrião secundou: — “Todo teatro moderno tem de ser marxista. Ou é marxista ou não é nem moderno, nem teatro”. Afastei-me um momento para largar o cigarro no cinzeiro. Quando voltei, o anfitrião falava para uma senhora, de belíssimo decote. Dizia ele, mais interessado no decote do que na luta de classes: — “Marx é tudo!”.
Houve uma concordância unânime (eu era a única e muda oposição). Durante duas ou três horas, Marx deixou de ser Marx e passou a ser “o velho”. E, quando as senhoras diziam “o velho”, havia um frêmito geral e voluptuosíssimo nos decotes. Foi então que arrisquei: — “O marxismo é o ópio do povo”. Fiz a frase, sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. A coisa saiu em tom modesto e, mesmo, tímido. Tive o cuidado de evitar
qualquer ênfase. Todavia, percebi, imediatamente, a minha inconveniência brutal. Ninguém disse nada; e esse mudo horror me agrediu mais do que um soco na cara.
Fui posto de lado. Fiquei confinado no fundo da sala, e só olhando. Lá adiante, o Bórgia falava, a outro decote, sobre o Sudeste Asiático. Mas eu era um pobre-diabo, sem função e sem destino, naquela festa. Mais um pouco e me despedi. Por coincidência, saiu comigo um conhecido. E ele veio me dizendo: — “Chamar marxismo de ópio do povo é uma boa piada”. Logo, porém, corrigiu: — “Mas você deu um fora. Não se diz tudo”. Retruquei-lhe que as coisas não ditas apodrecem em nós. Com uma condescendência superior, o outro suspira: — “Você é literário demais”. (...)"
(O verdadeiro Cristo é Marx)
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"(...)E, assim, lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres — os nossos idiotas têm também os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes. Eu disse que estão por toda a parte: — na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
Dirão que exagero. Absolutamente. E é tão importante ser idiota, tão decisivo, que já desponta a fauna, sem precedentes, dos “falsos cretinos”.
São rapazes inteligentíssimos, bem-dotadíssimos, alguns beirando a genialidade. Pois bem. O sujeito, para viver, ou sobreviver, enterra o próprio espírito, como as jóias de Raskolnikov. E, se for preciso, ele finge debilidade mental e põe-se a babar na gravata, copiosamente.(...)"
(Os Falsos Cretinos)
Crônicas publicadas em "O Óbvio Ululante".
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