quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Rilke- Os Cadernos de Malte Laurids Brigge

É ridículo. Estou aqui sentado no meu pequeno quarto, eu, Brigge, que tenho vinte e oito anos e de que ninguém sabe. Estou aqui sentado e não sou nada. E no entanto este nada começa a pensar e, num quinto andar, por uma tarde pardacenta de Paris, pensa este pensamento:

É possível, pensa esse nada, que se não tenha ainda visto, reconhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milênio para observar, refletir e anotar e que se tenha deixado passar os milênios como um recreio da escola em que se come o pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que, a despeito de invenções e progressos, a despeito da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado à superfície da vida? É possível que se tenha recoberto mesmo esta superfície- que no fim e ao cabo seria ainda alguma coisa- com uma substância incrivelmente enfadonha, que a torna parecida com móveis de salão durante férias de Verão?
Sim, é possível.
(...)
É possível que todos estes homens conheçam com toda a exatidão um passado que nunca existiu? É possível que todas as realidades nada sejam para eles; que a sua vida decorra sem estar ligada a nada, como um relógio num quarto vazio?
Sim, é possível.
(...)
É possível que haja pessoas que digam "Deus" e suponham que isso é algo de comum? - E vê estes dois meninos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho compra outro igualzinho no mesmo dia. E mostram um ao outro os canivetes passada uma semana, e vê-se então que eles só muito de longe se parecem,- tão diferentemente eles se desenvolveram em mãos diferentes. (Ora, diz a mãe de um deles: se vós pondes logo tudo a servir e tudo gastais...-) Ah, é verdade: É possível acreditar que se possa ter um Deus sem o usar?
Sim, é possível.

Mas se tudo isto é possível, se tem mesmo só uma ligeira aparência de possibilidade,- então, por quem sois!, é preciso fazer qualquer coisa! O primeiro que teve esse pensamento inquietante, tem de começar a fazer qualquer coisa do que se descuidou; mesmo que seja um qualquer, sem ser o mais apropriado: pois se não há outro...
Este jovem, este estrangeiro sem importância, este Brigge, terá de se sentar no seu quinto andar e escrever, dia e noite: sim, terá de escrever, e isso será o fim.

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