sábado, 6 de junho de 2009

Stefan Zweig - 24 horas na vida de uma mulher

"No entanto, nessa época, pouca graça encontrava eu naquela monotonia de rostos indiferentes, até que um dia, meu marido, para quem a quiromância era paixão dominante, me indicou uma forma absolutamente nova de ver, efectivamente muito mais interessante, muito mais excitante e cativante que a de ficar para ali plantada com indolência: consistia em não fitar nunca o rosto das pessoas, mas unicamente o quadrado da mesa e, dentro dele, as mãos dos jogadores - nada mais do que o movimento dessas mãos.
(...)
A única coisa que varia neste quadro são as mãos, a multidão de mãos claras agitadas ou em expectativa a volta do pano verde, todas semelhantes a feras prontas a saltar, sempre diferentes na forma e na cor, umas nuas, outras carregadas de anéis e de pulseiras chocalhantes; umas peludas como feras selvagens, outras flexíveis e húmidas como enguias, mas todas atravessadas por oculta tensão e vibrando de extraordinária impaciência.
Sem querer, vinha-me sempre à ideia um campo de corridas onde, no momento da partida, os cavalos, excitados, são contidos a força, para que não abalem antes da hora marcada. É exactamente desta maneira que as mãos dos jogadores tremem, se erguem e se preparam. Elas revelam, pela forma
como esperam, como agarram, ou ainda como estão quietas, a individualidade do jogador. Crispadas como garras, denunciam o homem cúpido; flácidas, o pródigo ; calmas, o calculista ; e frementes, o homem desesperado. Cem caracteres se traem, assim, com a rapidez dum relâmpago, no gesto que fazem para agarrar o dinheiro, quer o jogador o machuque, quer, nervosamente, o espalhe, quer, esgotado já, fechando a mão flácida, o deixe rolar livremente pelo tapete.


O jogo revela o homem, é uma frase banal, bem sei ; mas digo mais : a mão, durante o jogo, revela-o melhor ainda. Todos, quase todos os que praticam o jogo de azar, depressa aprendem a modelar a expressão do rosto; lá no alto, por cima do colarinho, exibem a máscara fria da impassibilidade ; obrigam a desaparecer as rugas que se vão formando ao canto da boca; abafam a emoção entre os dentes cerrados; ocultam, aos próprios olhos, o reflexo da sua inquietação; atenuam a saliência dos músculos da face numa calma artificial que procura fingir de elegância. Mas precisamente porque toda a sua atenção se concentra, de maneira convulsiva, no trabalho de dissimular o que há de mais visível na sua personalidade - isto é, o rosto, esquecem por isso as mãos, esquecem que há indivíduos que observam unicamente essas mãos, e que, graças a elas, adivinham quanto se pretende esconder debaixo do franzir dos lábios que tentam sorrir e dos olhos que se esforçam por simular indiferença. A mão trai, sem pudor, o que se sente de mais íntimo. Um momento chega, inevitavelmente, em que todos aqueles dedos, dificilmente contidos e que parecem dormir, abandonam a sua indolente postura: no segundo decisivo em que a bola da roleta cai na cavidade e se ouve apregoar o número que ganhou, faz, sem querer, um movimento próprio, absolutamente individual, imposto pelo mais primitivo instinto. E quando uma pessoa está habituada, como eu - que fui iniciada, graças a paixão de meu marido, a observar essa espécie de arena das mãos -, então tal maneira brusca, sempre diferente, sempre imprevista, como os temperamentos sempre novos, desmascara-se, é mais impressionante do que o teatro ou a música. "



Nenhum comentário: